TEXTURA EDIÇÃO 7, O INFORMATIVO DO FIT

Retorno ao Deserto : Poesia e política

A diretora Catherine Marnas entendeu a aprofundou o (esse) sentido da obra de Koltès , por meio de coros de Mathilde e de Adrien , por meio do bilinguismo da encenação, em que as réplicas são faladas em português e em francês por atores franceses e brasileiros, extraindo-se daí também uma produção excedente de sentido. Tudo se constrói como multiplicidade litigante, como diferença tensionada na encenação. As lutas travadas entre Adrien e Mathilde, por meio da estrutura coral e do bilingüismo , se desmembram enormemente em inúmeras associações com o horizonte cultural e histórico de presente. O cenário concebido por Carlos Calvo e formado por estrutura verticais de madeira constrói a monumentalidade da casa e de seus muros belamente. Do mesmo modo, a visão que se tem desde o jardim, dos cômodos iluminados no interior da casa à noite é não só de grande eficiência, mas logra efeito visual de intensa força poética, conjugando a criação cenográfica e a iluminação de Michel Theuil.

Vemos,na peça,lutas atrozes,que passam,na encenação,por vários registros,indo do confronto dramático à grandiosidade operística,da comédia pastelão às cenas intimistas e mesmo sussuradas, como naquela, de beleza ímpar, em que vemos, com baixa intensidade de luz, o empregado da casa,na companhia de Edouard e Mathieu, filhos de Mathilde e da Adrien, a noite, na mesa de um bar árabe poucos minutos antes de o recinto vir a explodir, em decorrência da intolerância com o outro e a diferencia. Mas é curioso notar que compartilham o poder e que lutam entre si pelo seu contrôle mantêm o mesmo deprezo pelo outro, sejam esse outro a criança e o jovem, sejam os homens e mulheres do terceiro mundo. Deprezo esse que se patenteia nas atitudes de ambos os protagonistas (Mathilde e Adrien) em relação tanto aos argelinos e africanos de modo geral, quanto aos domésticos árabes que servem aos patrões franceses. Os altos muros que cercam a casa encerraram Mathieu, filho de Adrien , em seu interior, ao longo dos muitos anos em que Mathilde viveu na Argélia. Os muros são como a cerca de arame enfarpado que, na peça Combate de Negros e de Cães, separa o canteiro de obra de empresa francesa na África, segregando-o em relação à savana , aos animais e aos homens africanos,vistos pelos franceses ora como animais, ora como selvagens. Adrien, em « Retorno ao Deserto »,diz para o filho,enquanto o impede de realizar o desejo de sair de casa, que do outro lado do muro é a selva. Essas cercas , esses muros de algumas peças de Koltès ganham, em encenações realizadas na década atual, uma sobrecarga excepcionalmente forte de sentido em associaçao com o aumento radical das legislaçoes e das práticas policiais que protegem os paises europeus frente as massas de immigrantes pobres, que se voltam para os países mais ricos em busca de melhores esperanças de vida . A encenação de « Retorno ao Deserto » no múltiplo dos seus coros e nos desempenhos individuais , na vociferação litigante e no segredo do sussurro, no bilingüismo com que se estrutura, na grandiosidade do dispositivo cênico e na simplicidade por que se pauta o todo, acaba por aprofundar a poética radical e a dimensão política de que o dramaturgo francês precocemente falecido dotou seus textos teatrais.

José Da Costa